Da cabine do barco do Cinema no Rio São Francisco, vejo o Velho Chico e o céu emoldurados. Atravesso a portinha e a imagem se amplia. Chegamos em Cachoeira do Manteiga, em Minas Gerais. Subo o barranco, afundo meus pés na terra fina e avermelhada, inspiro o ar fresco e limpo, tão distinto do que eu conheço, saio da sombra e dou as primeiras passadas para visitar a cidade, debaixo de um sol que castiga a pele e os olhos. De todas as cidades que percorri até agora, Cachoeira do Manteiga é a que mais me fez lembrar do sertão que conheci quando menina: chão poeirento e seco, sol a pino, pessoas escondidas nas sombras raras e a beleza de algumas flores, a despontar no meio de tanta secura. Animais pelas ruas, trabalho escasso, luta pela sobrevivência… do corpo e das tradições.
Caminho por Cachoeira do Manteiga ao lado de Góia – minha inseparável companheira nesta viagem – e vejo meninos pendurados no barranco a esperar a novidade que chega com a gente: “Vai ter cinema hoje. Vai ter pipoca!”. Um pescador, que tira seu sustento do Velho Chico, senta para conversar conosco, enquanto dividimos uma garrafa de água para espantar o calor. “A balsa tá parada. Vai faltar comida no armazém. A gente depende muito da balsa. A estrada é muito ruim. As coisas demoram a chegar”. Eu penso em todas as vezes que vou ao supermercado e tenho tudo à mão, tão facilmente. Não dependo de uma balsa que sempre quebra e começo a ver o quanto sabemos muito pouco das outras formas de viver e de como todos dão um jeito de se adaptar à realidade que se apresenta.
“Quando coisas assim acontecem na cidade (o pescador fala do Cinema no Rio São), a gente fica feliz. É um dia diferente, sabe? Um dia que a gente esquece os problemas. Quando a fábrica fecha para recesso, a gente fica sem emprego. Quando coisas assim chegam na cidade, a gente até esquece que o dinheiro tá curto e que tá difícil, né?”. Depois de um tempo, ele fala que vai sair. É hora de preparar a canoa para pescar e tentar vender os peixes na cidade, para outras pessoas que, como ele, também estão tentando se virar para garantir o sustento. Eu e Góia então tomamos nosso rumo.
Góia lembra de uma cozinheira de mão cheia de Cachoeira do Manteiga. Saímos à procura de sua casa e encontramos a senhorinha à beira do fogão à lenha. Ela nos estende um pão de queijo para me lembrar que ainda estou em Minas. Proseamos um pouco e a deixamos continuar com seus afazeres – terminar de cozinhar o que será servido em seu pequeno restaurante caseiro. Todos vão dando o seu jeito de sobreviver, improvisando, usando a criatividade e fazendo da fé seu maior suporte.
A fé, inclusive, está envolvida em uma das manifestações culturais que ainda resistem ao tempo na cidade: a folia – tradição religiosa de pagação de promessa que envolve canções entoadas e instrumentos como a viola e a rabeca. Entre as secas e cheias do Velho Chico, os habitantes da cidade fazem pedidos aos seus santos de fé: para protegerem suas casas, a colheita ou para que o peixe nunca falte no rio e no prato dos habitantes da cidadezinha, que nasceu, inclusive, depois da cheia de 1939, devastando o antigo povoado de Paracatu de Seis Dedos. O lugarejo coberto pelo São Francisco deixou de existir, mas os antigos habitantes que restaram fundaram dois novos povoados: o de Ponto Chique e o de Cachoeira do Manteiga.
Quando a vida traz desesperança, quando o rio enfrenta a seca, quando a comida rareia no prato, as velas para os santos são acesas. Quando a chuva vem, quando a comida é farta, quando o trabalho aparece, é hora de pagar as promessas aos santos e a folia entoa seu canto de agradecimento. O som da viola então ecoa, a rabeca traz suas notas dramáticas e, às vezes, doídas, e todos seguem em procissão para acertar suas contas. A folia resiste ao tempo, mas seus representantes, já idosos, temem por seu fim. Tradição e fé são os alicerces da pequena Cachoeira do Manteiga, que segue seu ritmo desacelerado, sua rotina, seus improvisos para a labuta diária pela vida, até algo diferente chegar e balançar a cidade, trazendo um pouco mais de esperança, um tanto de cor, um tanto de movimento, mesmo que em um dia apenas.
Quer conhecer um pouco mais sobre Cachoeira do Manteiga? Então assista ao documentário produzido pelo Cinema no Rio São Francisco sobre a cidade. 🙂
Acompanhe nossa série de posts sobre a expedição Cinema no Rio São Francisco, acessando http://jeguiando.com/cinema-no-rio-sao-francisco-expedicao/ e para visitar o site do projeto acesse Cinema no Rio São Francisco.
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[…] Cachoeira do Manteiga, MG – Sertão de fé, tradições, da viola e da rabeca Postado por Janaína Calaça em mai – 31 – 2012 0 Comentário // // […]
Oi, Jana. Tudo bem?
Seu post foi selecionado para a #Viajosfera, do Viaje na Viagem.
Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
Beijos,
Natalie – Bóia Paulista