Toda viagem gera lembranças e boas histórias para contar. Pensando nisso, resolvi compartilhar com os leitores algumas de minhas histórias tragicômicas através de crônicas leves (as Jegue Crônicas), bem “facinhas” de ler, para aqueles momentos em que a última coisa que você quer pensar é no movimento de rotação da Terra ou no movimento de translação da lua. Nossa primeira Jegue crônica é sobre minha segunda viagem a Floresta do Navio, interior de Pernambuco, onde meu pai nasceu e onde passou alguns anos de sua vida. Esta é uma das minhas primeiras lembranças tragicômicas e afetivas de viagem! Então, vamos a ela!

Eu tinha 5 anos de idade na época. Meu pai tinha acabado de ficar desempregado e tudo que ele queria, naquele  momento, era rever a família que deixou em Pernambuco, quando se mudou para a Bahia. Minha mãe estava com passagens de avião compradas para Natal para ir visitar uma prima. Passagem de avião! Luxo naquele tempo! Uma passagem para ela, uma para mim. Minha mãe tinha até comprado um sutiã para este ser que vos fala, só porque eu insistia em ser adulta antes da hora. Ah… Tudo para aquela tão sonhada viagem de férias. Mas, com a demissão do meu pai, os planos mudaram e toca cancelar passagem e arrumar as malas para cair no sertão pernambucano.

E pra quem não conhece, esse aí é um Tanger!

E pra quem não conhece, esse aí é um Tanger!

Na época, tínhamos na garagem um Tanger. Meu pai tinha comprado o carro depois de ganhar na quina (sim, a da Loteria). Seu Luiz é aquela figura que sempre ganhava na rifa, em sorteio de cesta de natal em festa de firma e até na quina da Loto! O Tanger era nosso carro no tempo. Tinha portas e capota, mas convenhamos que viajar mais de 8 horas num troço destes, que pula mais que jumento no cio, não era definitivamente uma ideia das mais brilhantes!

Meu pai é cabeça dura e minha mãe, no tempo, ainda embarcava nas loucuras dele. Casal com poucos anos de casados dá nisso! Malas prontas, começa então a organização da viagem. Em um Tanger, cabem 5 pessoas apertadas e mais nada. Digo novamente, mais nada! Quando viajo e enfio mil coisas em uma mala pequena, lembro que devo ter herdado esta faceta de minha família: a arte de multiplicar espaços inexistentes!

Até mudas de mamoeiro levamos na bagagem para a viagem a Floresta, em Pernambuco.

Até mudas de mamoeiro levamos na bagagem para a viagem a Floresta, em Pernambuco. Fonte da Imagem: Toda Fruta.

Chego na sala e dou de cara com os seguintes itens (que viajariam conosco dentro do Tanger): malas (umas três pelo menos); 4 travesseiros; um isopor grande (grande mesmo) para levar água, sopa, mamadeiras e afins e mudas de mamoeiros (sim, mudas de mamoeiros!). Meu pai iria na frente, dirigindo; minha mãe ao lado, no carona, com meu irmão de um ano de idade no colo. Atrás, iriam a babá do meu irmão, eu e as malas, os travesseiros, o isopor e as famigeradas mudas. Como o Tanger não tem porta-malas, fatidicamente nos espremeríamos com toda a bagagem! Mas este é um detalhe irrelevante diante de todas as desventuras que estavam por vir!

Lembro que meu pai tirou todos da cama logo cedo, no meio da madrugada, para não pegar muito sol na estrada. Como zumbis, entramos naquela banheira de fibra com rodas, que ele chamava de carro, e tocamos para o sertão pernambucano. Enrolada em um lençol e segurando minha fraldinha com um nó na ponta, eu, como toda criança, fiquei animada na primeira hora, depois tudo que desejava era que aquela capota parasse de fazer batuque no carro e ponte direta do vento, que me acertava bem no meio do nariz e trazia toda a poeira da estrada para a garganta da babá asmática.

A velha casa ainda está lá. Imagem: Fábio Brito (Arquivo Jeguiando)

A velha casa ainda está lá. Imagem: Fábio Brito (Arquivo Jeguiando)

Chão, chão, chão, vento, vento, vento, poc, poc, poc da capota. Chão, chão, chão, vento, vento, vento, poc, poc, poc da capota. Poc, pufffff. De repente, ouvimos um som estranho e o carro começou a destrambelhar. Meu pai encosta o carro e minha mãe já se desespera. Eu herdei a coisa toda de me desesperar de minha mãe! Pneu furado… Toca trocar o pneu.

Seguimos viagem.  Chão, chão, chão, vento, vento, vento, poc, poc, poc da capota. O carro começa a ficar estranho de novo. Meu pai para o Tanger no acostamento inexistente. Minha mãe, a esta altura, já reza até para santo que não existe. Eis que decidem procurar um mecânico na cidade mais próxima, que, no Nordeste, pode ficar a poucos quilômetros ou lá depois que o vento faz a curva e acena.

Da janela, eu vejo o mundo. Imagem: Fábio Brito (Arquivo Jeguiando)

Da janela, eu vejo o mundo. Imagem: Fábio Brito (Arquivo Jeguiando)

O Tanger quebrou ao todo 5 vezes durante a viagem! 5 vezes! Acho que foi uma forma simpática do carro me desejar feliz aniversário. 5 paradas forçadas, cinco velinhas no bolo, parabéns pra você, Janaína! E para seu irmão também, que calhou de nascer no dia que você completa anos! Mas, o ponto alto das inguiçadas do Tanger foi quando, majestosamente, a caixa de marchas ficou na mão de meu pai. Aí sim, minha mãe não só rezou para santo que não existia, como também aderiu a todas as manifestações religiosas que nos livrasse do mal, amém!

Já descabelada, suada e com um humor de dar medo até no mais corajoso dos homens, minha mãe resolveu, em uma das cidadezinhas que paramos para tentar emendar o Tanger com durepox, arranjar um lugar para dar banho no meu irmão, que, segundo ela, estava grudento e chorava feito uma carpideira! Com um calor de rachar coco em estrada, fomos parar, minha mãe, meu irmão, a babá asmática (que já surtava depois de engolir tanta poeira na estrada) e eu, em uma casinha. Minha mãe pediu para dar um banho em meu irmão e conseguiu uma bica para isso. No entanto, quando entramos na casa, minha mãe começou a mudar a cara. Só lembro dela dizer: “tapa o olho, menina! Tapa o olho!”. Não entendi nada na hora, mas, anos depois, despida de  toda a inocência típica da idade, descobri que meu irmão havia tomado seu primeiro banho num brega ou simplesmente puteiro, para aqueles que não conhecem as particularidades de algumas expressões nordestinas.

Entre moças de shortinhos e saias, que mais pareciam tapa-olhos, entre canções de gosto duvidoso e copinhos americanos cheios de cachaça, meu irmão tomou seu banho e só não contou vantagem para os amigos, porque não tinha idade para isso! Ah, as tradições abestadas dos homens! Mas, no frigir dos ovos e no embalo da omelete, a viagem continuou. Entre carro quebrado, babá asmática, chiliques de minha mãe e eu morrendo de tédio, chegamos finalmente em Floresta, no alto sertão Pernambucano, cidade dos tamarindos.

Vô, eu e os bezerrinhos em Floresta, Pernambuco.

Vô, eu e os bezerrinhos em Floresta, Pernambuco.

Dos poucos dias que passei lá, lembro de sentar na soleira da porta da antiga casa com os dedos esticados para os bezerrinhos abocanharem, achando que minha mão era uma teta; do lampião aceso e do cheiro de querosene; de minha tia perguntar se eu gostava mais dela ou do peixinho frito e eu responder, sem titubear, que gostava mais do peixinho e também do cheiro de cuscuz e queijo coalho com café com leite fresco. Lembro também de uma vaca fazer do meu pé um banheiro de luxo, quando fiquei com a cara enfiada na cerca, olhando o gado mugir sonolento; ou da minha falecida vó me dando um punhado de milho para jogar para as galinhas. Lembro da terra seca, da casa simples e de esquecer do cansaço daquela viagem tragicômica. Do retorno, só lembro mesmo do Opalão de meu tio nos levando para cidade para pegar o ônibus, da tristeza de meu pai nos vendo ir embora mais cedo,  por causa de meu irmão que já não comia. Daquela primeira viagem, do finzinho dela, ficou a imagem de minha vó me dando, para comer no trajeto de volta a Salvador, um pedaço de goiabada e outro de marmelada, um em cada mão. Doces lembranças de uma viagem que começou torta, mas que acabou gerando histórias para contar.

Eu alimentando dando milho para as galinhas, em minha segunda viagem a Floresta, Pernambuco.

Eu dando milho para as galinhas, em minha segunda viagem a Floresta, Pernambuco.

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Um comentário

  1. […] This post was mentioned on Twitter by Carolina Rodrigues and jana_calaca, Jegueton. Jegueton said: Já conhecem as Jegue Crônicas? São crônicas de viagem "facinhas de ler", esperando por vcs! Leia a 1ª! http://bit.ly/9jsd11 […]


 

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