A história e a memória de Cunha, como a de muitas cidades, não encontram-se apenas registradas em livros ou em museus. Em muitos recantos deste vasto mundo, a história e a memória mantêm-se vivas através de personagens de carne e osso, que, contrariando a forma como a História oficial se apresenta – com H maiúsculo, distanciada, escrita e perpetuada através de uma perspectiva apenas -, ganham, no cotidiano, uma democrática escrita polifônica: uma história contada em diversos tempos e alinhavada por diversas vozes. Felizmente, deparei-me com uma pluralidade de discursos e de perspectivas nesta segunda visita à cidade, considerada o maior núcleo de cerâmica artística do Brasil, e, através desta experiência, passei a ver Cunha como um mosaico de cores múltiplas e vivas, constituído pela história particular de cada ceramista que lá aportou um dia. Um mosaico feito de carne e de tempo: das mãos habilidosas dos ceramistas e da vida dedicada à cerâmica.

Em uma peregrinação particular, Erik e eu visitamos alguns dos ateliers mais conhecidos de Cunha. Entre indicações, folhetos e conversas, aproveitamos os poucos dias na cidade para tentar construir, através de conversas e de visitas a diversos ateliers, um panorama sobre o movimento ceramista da cidade, que teve início na década de 70, por volta de 1975, quando um grupo de ceramistas fez da cidade não somente um lar, mas, sobretudo, um local para desenvolver seus trabalhos.

Cerâmica de Cunha. Imagem: Erik Pzado e Janaína Calaça

Cerâmica de Cunha. Imagem: Erik Pzado e Janaína Calaça

Por coincidência ou não, em nossa segunda noite na cidade, aterrissamos na exposição de um dos pioneiros do Movimento Ceramista de Cunha – Vicco Cordeiro, falecido no início dos anos 90. Vicco juntou-se, ao lado de Toninho Cordeiro e Rubi Imanishi, ao movimento fomentado pelos ceramistas Toshiyuki, Alberto Cidraes – do Atelier do Antigo Matadouro – e Mieko Ukeseki – do Ateliê Mieko e Mário. O projeto de trazer a cerâmica à Cunha foi firmado no Japão entre Cidraes, Toshiyuki e Mieko, que, juntamente com Vicco, Toninho e Rubi, construíram no antigo matadouro municipal o primeiro forno à lenha de alta temperatura, do tipo Noborigama.

Resguardadas pela ceramista Mieko Ukeseki, muitas das peças de Vicco aguardam um destino: um museu físico, onde possam ser expostas e integradas às demais peças, que fazem parte da história e da memória do movimento que mudou a face da cidade. Por enquanto, por iniciativa própria, Mieko idealizou o Memorial da Cerâmica de Cunha, um museu virtual onde é possível não só conhecer um pouco da história da cerâmica na cidade, como também visualizar a obra de muitos dos ceramistas que fizeram e fazem parte da história da tradição da cerâmica no destino.

Peças de Vicco Cordeiro, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha, expostos no Restaurante Quebra Cangalha. Imagem: Erik Pzado

Peças de Vicco Cordeiro, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha, expostos no Restaurante Quebra Cangalha. Imagem: Erik Pzado

Peças de Vicco Cordeiro, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha, expostos no Restaurante Quebra Cangalha. Imagem: Erik Pzado

Peças de Vicco Cordeiro, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha, expostos no Restaurante Quebra Cangalha. Imagem: Erik Pzado

Em nossa passagem, tivemos não só a oportunidade de visitar muitos dos ateliers que compõem o circuito da cerâmica de Cunha, como aos personagens que contam, de perspectivas diversas, a sua história. Conhecemos Mieko, uma das pioneiras do movimento, de personalidade alegre e divertida, que luta não só pela conservação da memória da cerâmica em Cunha, como também pela perpetuação da tradição através das novas gerações. Como forma de contribuir para a permanência da cerâmica no cotidiano da cidade, Mieko, atualmente, ministra aulas gratuitamente para jovens no ICCC – Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha. Ao seu lado, Mário Konishi, esposo e parceiro, toca o atelier que divide terreno com sua própria casa, onde muitas histórias vão sendo esculpidas, assim como o barro que desdobra-se em belas peças de arte e utilitários, expostos em suas prateleiras. Apesar da singularidade e personalidade da história da cerâmica em Cunha, seu Mário teme pela perda da memória do movimento da cidade. Caso as próximas gerações não abracem a tradição ou os poderes públicos não invistam na criação de um museu dedicado à cerâmica dos artistas da região, muito provavelmente a memória perecerá juntamente com a finitude de seus artistas. Esta, sem dúvidas, foi uma das mais tocantes conversas que tivemos durante a viagem.

Atelier Mieko e Mário. Imagem: Janaína Calaça

Atelier Mieko e Mário. Imagem: Janaína Calaça

Atelier Mieko e Mário. Imagem: Erik Pzado

Atelier Mieko e Mário. Imagem: Erik Pzado

Atelier Mieko e Mário. Imagem: Erik Pzado

Atelier Mieko e Mário. Imagem: Erik Pzado

Jana e seu Mário, do Atelier Mieko e Mário. Imagem: Erik Pzado

Jana e seu Mário, do Atelier Mieko e Mário. Imagem: Erik Pzado

Um outro personagem profundamente instigante, que tivemos a alegria de conhecer, foi Alberto Cidraes – do Atelier do Antigo Matadouro. Nascido em Elvas, em Portugal, Cidraes, assim como Mieko, foi um dos precursores do Movimento Ceramista de Cunha e mantém, até hoje, um dos ateliers mais intrigantes da cidade. Libertário e sábio, Cidraes, durante uma longa conversa, comentou a posição de muitos acadêmicos, que vestem-se de “vozes autorizadas” e consideram a cerâmica “uma arte menor”. O ceramista e arquiteto foi enfático: “não reconheço autoridade de nenhuma instituição acadêmica. Toda voz é autorizada”. Questionado por nós sobre o posicionamento de muitos acadêmicos sobre a cerâmica ser considerada uma “arte menor”, devido, talvez, à vasta tradição na produção de utilitários, o ceramista pontua que o que difere um utilitário de uma peça de arte é o seu design e os referenciais reconhecidos e embutidos nesta. Uma peça que conta, em suas reentrâncias, uma história, nunca será apenas um utilitário. Nisso, ele aponta uma de suas produções e diz que nela reconhece o seu fascínio pelas culturas pré-colombianas, africanas e orientais, além de reconhecer traços de uma influência pré-medieval em seus trabalhos, fruto da cidade onde nasceu. Cidraes ainda pontua que Cunha vem se firmando na seara da Cerâmica de Autor ou Cerâmica Autoral, ou seja, que muitos dos seus artistas já são reconhecidos pela personalidade embutida em suas peças. Instigante, o ateliê deste singular artista lusitano tornou-se, sem dúvidas, um dos meus preferidos.

Atelier do Antigo Matadouro, de Alberto Cidraes. Imagem: Erik Pzado

Atelier do Antigo Matadouro, de Alberto Cidraes. Imagem: Erik Pzado

Alberto Cidraes, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha. Imagem: Erik Pzado

Alberto Cidraes, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha. Imagem: Erik Pzado

Alberto Cidraes, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha. Imagem: Erik Pzado

Alberto Cidraes, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha. Imagem: Erik Pzado

Peça de Alberto Cidraes, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha. Imagem: Erik Pzado

Peça de Alberto Cidraes, um dos pioneiros do movimento ceramista de Cunha. Imagem: Erik Pzado

Mieko e Cidraes, além de pioneiros do movimento, trouxeram para Cunha a tradição do uso dos fornos Noborigama, que queimam peças a altas temperaturas de forma lenta. Além dos ceramistas, outros ateliers também seguiram e ainda seguem a tradição, que confere ao barro a dureza da pedra. Em uma passagem pela cidade, tivemos ainda a oportunidade de conhecer o belíssimo atelier de Suena e Jardineiro, um dos mais famosos, que costuma promover aberturas de seus fornos ao público. Kimiko Suenaga e Gilberto Jardineiro saíram do Japão e chegaram em Cunha em 1985. Em 1988, promoveram a primeira abertura de fornada ao público, tornando esta uma de suas tradições.

Abertura de forno do Atelier Suenaga e Jardineiro. Imagem: Erik Pzado

Abertura de forno do Atelier Suenaga e Jardineiro. Imagem: Erik Pzado

Fornos Noborigama do Atelier Suenaga e Jardineiro. Imagem: Erik Pzado

Fornos Noborigama do Atelier Suenaga e Jardineiro. Imagem: Erik Pzado

Atelier Suenaga e Jardineiro. Imagem: Erik Pzado

Atelier Suenaga e Jardineiro. Imagem: Erik Pzado

Atelier Suenaga e Jardineiro. Imagem: Janaína Calaça

Atelier Suenaga e Jardineiro. Imagem: Janaína Calaça

Tradicional também é o atelier de Cristiano e Sandra Quirino, localizado do lado oposto do Atelier do Antigo Matadouro. Simpáticos e receptivos, Cristiano e Sandra nos deram uma verdadeira aula básica sobre o trabalho com o barro e a sua transformação em peças de cerâmica. Da escolha do material, da preparação do barro à confecção das peças, que envolve o esculpir, a queima do biscoito, a aplicação de esmaltes e a queima em altas temperaturas, o trabalho com a cerâmica exige paciência, tempo e dedicação. Pacientes e dedicados, este casal de ceramistas trabalha hoje com vasos, potes, tigelas, pratos e objetos de design exclusivo.

Cristiano Quirino nos deu uma aula básica sobre cerâmica. Imagem: Erik Pzado

Cristiano Quirino nos deu uma aula básica sobre cerâmica. Imagem: Erik Pzado

Sandra e Cristiano Quirino, ceramistas. Imagem: Erik Pzado

Sandra e Cristiano Quirino, ceramistas. Imagem: Erik Pzado

Atelier de Cristiano e Sandra Quirino. Imagem: Erik Pzado

Atelier de Cristiano e Sandra Quirino. Imagem: Erik Pzado

Atelier de Cristiano e Sandra Quirino. Imagem: Erik Pzado

Atelier de Cristiano e Sandra Quirino. Imagem: Erik Pzado

Além da geração que utiliza os fornos à lenha do tipo Noborigama em sua rotina de trabalho, uma outra geração igualmente compõe a história de Cunha no que diz respeito à tradição da cerâmica: a de artistas que utilizam fornos a gás para a queima de suas peças. Nesta seara, destaca-se o casal Malí e Wagner Gambaré, do Ateliê Gaia, que, além da utilização dos fornos a gás, trabalham suas peças também com a técnica do Raku, que envolve uma cozedura das peças cerâmicas e uma posterior “queima” em altas temperaturas, seguida de um rápido resfriamento em câmeras cheias de folhas ou serradura. Pela beleza promovida pelo espetáculo das peças incandescentes queimadas pela técnica do Raku, Malí e Wagner decidiram promover, em seu atelier, encontros para visitantes que tenham interesse em acompanhar de perto a queima. Promovidas à noite, as queimas de Raku tornaram-se um dos grandes atrativos do Atelier Gaia, que também destaca-se pela beleza de suas peças.

Malí e Wagner Gambaré, do Atelier Gaia. Imagem: Erik Pzado

Malí e Wagner Gambaré, do Atelier Gaia. Imagem: Erik Pzado

Queima do Raku. Atelier Gaia. Imagem: Erik Pzado

Queima do Raku. Atelier Gaia. Imagem: Erik Pzado

Câmara com serradura. Queima do Raku. Atelier Gaia. Imagem: Erik Pzado

Câmara com serradura. Queima do Raku. Atelier Gaia. Imagem: Erik Pzado

Pós resfriamento. Queima do Raku. Atelier Gaia. Imagem: Erik Pzado

Pós resfriamento. Queima do Raku. Atelier Gaia. Imagem: Erik Pzado

Peças do atelier Gaia. Imagem: Janaína Calaça

Peças do atelier Gaia. Imagem: Janaína Calaça

Outro ceramista que destaca-se pelo seu trabalho único em forno a gás é José Carlos Carvalho, do Atelier Carvalho Cerâmica. Simpático e atencioso, Carvalho – como é conhecido – nem sempre teve a cerâmica como profissão. Durante grande parte de sua vida, o artista trabalhou como Diretor de Arte nas principais agências de publicidade de São Paulo e, em paralelo, cultivava o amor pela cerâmica, que, na época, era apenas um hobby. Por volta de 1979, no entanto, o hobby passou a marcar maior presença na vida de Carvalho, que utiliza técnicas elaboradas como o esgrafito, o esgrafito com colagem e a multiqueima – essa uma das mais fascinantes, que consiste em submeter a mesma peça a múltiplas queimas, revelando cores e nuances surpreendentes. Suas queimas chegam a 1240ºC em forno a gás.

Carvalho mostra uma de suas peças que trazem a ilusão de ótica como inspiração. Imagem: Erik Pzado

Carvalho mostra uma de suas peças que trazem a ilusão de ótica como inspiração. Imagem: Erik Pzado

Carvalho com uma de suas produções. Ao fundo, o forno a gás onde queima suas peças. Imagem: Erik Pzado

Carvalho com uma de suas produções. Ao fundo, o forno a gás onde queima suas peças. Imagem: Erik Pzado

Atelier do Carvalho. Imagem: Erik Pzado

Atelier do Carvalho. Imagem: Erik Pzado

Atelier do Carvalho. Imagem: Erik Pzado

Atelier do Carvalho. Imagem: Erik Pzado

Entre fornos Noborigama e fornos a gás, entre ceramistas e antigas paneleiras, como Dona Dita – a última paneleira da cidade -, o certo é que a história da cerâmica de Cunha não se conta através de uma única perspectiva. Mesmo que a história tente se organizar de forma linear para fins didáticos, a sua beleza está em ser contada através de diversas vozes, de diversas perspectivas e abraçando a multiplicidade deste movimento, que pode ser visto, a olho nu, nas particularidades das peças produzidas pelos artistas que povoaram e povoam esta terra. Diversas são as técnicas, diversos são os olhares, múltiplas são as histórias carregadas nos corpos e nas peças dos ceramistas de Cunha. Minha sugestão? Visite esta cidade com tempo e com os olhos abertos e atentos para a beleza de suas peças e os ouvidos a postos para colher histórias verdadeiramente fascinantes.

  • Serviços:

> Memorial da Cerâmica de Cunha

Museu Virtual: http://www.mecc.art.br/

> ICCC – Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha

– Localização: Parque do Lavapés, Cunha, SP. CEP: 12530-000.

– Foco em: Educação, pesquisa, intercâmbio, documentação, divulgação em cerâmica.

– Tel.: (12) 3111-1628.

– Site: http://icccunha.org

> Atelier Mieko e Mário

– Localização: Rua Gerônimo Mariano Leite, 510. Cunha, SP. CEP: 12530-000.

– Tel.: (12) 3111-1468.

– Contato: miekoemario@uol.com.br

– Site: www.miekoemario@uol.com.br

> Atelier do Antigo Matadouro

– Localização: R. Manoel Prudente de Toledo, 461 – Cajuru. Cunha, SP.

– Tel.: (12) 3111-1628.

– Contato: albertocidraes@yahoo.com.br

Site: http://cidraes.com / http://desenho.net

> Atelier Suenaga e Jardineiro

– Localização: R. Dr. Paulo Jarbas da Silva, 150 – Mantiqueira, Cunha, São Paulo.

– Tel: (12) 3111-1530

– Site oficial: www.ateliesj.com.br

> Atelier de Cristiano e Sandra Quirino

– Localização:  R. Manoel Prudente de Toledo, 474 – Cajuru. Cunha, SP.

– Tel: (12) 3111-2456/ 9794-3714

– Contato: objetovirtual@hotmail.com

> Atelier Gaia

– Localização:  Rua Alcides Barbeta, 250. Villa Rica. Cunha, SP.

– Tel: (12) 3111-3126.

– Contato: gaiaceramica@ig.com.br

>Atelier do Carvalho

– Localização: Rua Gerônimo Mariano Leite, 190. Vila Rica, Cunha, São Paulo.

– Tel: (12) 3111-2483

– Site oficial: www.carvalhoceramica.com.br

  • Agradecimentos

Agradecemos ao convite da AD Comunicação & Marketing e da Secretaria de Turismo de Cunha para retornar à cidade e por todo suporte.

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2 Comentários

  1. […] – e pão de queijo, eu fui de tortinha de Shitake. Além de ser um destino conhecido por sua cerâmica e por ser um dos maiores produtores de pinhão do estado, Cunha também é muito conhecida por sua […]

  2. […] núcleo de cerâmica artística do Brasil, Cunha não só atrai a atenção de viajantes por seus ateliers e oficinas de cerâmica (mesmo que este seja seu principal atrativo), como também por suas atividades outdoor, paisagens […]


 

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