Lembro-me de caminhar ao lado de minha mãe pela Feira de São Joaquim, em Salvador, pelo labirinto de barraquinhas, entre os cheiros de camarão seco e dendê e do alarido dos vendedores que tentavam atrair os clientes para suas barracas. “Aqui tem camarão graúdo, dendê do bom e quiabo verdinho. Chega aqui, freguesa!”. Poucas semanas antes do Dia de São Cosme e Damião, minha mãe e eu saíamos para comprar os ingredientes para o caruru, que passou a ser rotina em nossa casa. O caruru em nossa família nasceu pequeno, numa panela miúda, o suficiente para alimentar a nós seis. Depois, foi crescendo. De almoço em família, o nosso caruru virou festa. Festa para família, festa para amigos, festa para os santos. Ao longo dos anos, não só a quantidade de quiabos se multiplicava, mas também o número de pessoas que vinham comer o nosso caruru e crescia também o tamanho de nossos panelões fumegantes.


Camarão seco. Imagem: Erik Pzado

Camarão seco. Imagem: Erik Pzado

Quem é de Salvador sabe que o sincretismo é uma de suas características mais marcantes. Sempre gosto de citar a história do pequeno altar (ainda existente) na casa de minha mãe. O altar era mantido sempre limpo e aceso por minha vó, que, como ela mesma dizia, era Católica Apostólica Romana, mas mantinha ao lado da imagem de Nossa Senhora a linda imagem de Yemanjá. Devido ao forte sincretismo soteropolitano, cresci entre santos católicos e orixás, que admiro e respeito. Em minha cidade, o sincretismo fica mais evidente ainda nas festas dedicadas ao Senhor do Bonfim (Oxalá), à Santa Bárbara (Iansã) e a São Cosme e Damião (que, no Candomblé, ainda conta com a presença de mais um irmão — Doum —, que nasceu após o parto dos gêmeos).

Dendê. Imagem: Erik Pzado

Dendê. Imagem: Erik Pzado

Em dia de São Cosme e Damião, a grande maioria das casas de Salvador oferece um caruru, grande ou pequeno, em casa de rico, em casa de pobre, em casa católica e em casa de candomblé. Não importa se você é de uma religião ou de outra, grande parte da cidade para para comer o caruru. No altar das casas, o que muda é a imagem dos santos. Em casa católica, a imagem é de Cosme e Damião. Em casa de quem é de Candomblé, Doum, o terceiro, ocupa seu lugar no altar.

Caruru. Imagem: Erik Pzado

Caruru. Imagem: Erik Pzado

Em dia de festa, o caruru não é apenas um prato feito com quiabo, azeite de dendê e muito camarão seco. Quando falamos em caruru, falamos de um banquete inteiro, inspirado nas comidas dos orixás e tem de tudo: vatapá, abará, acarajé, arroz, feijão fradinho com camarão, xinxim de Galinha, farofa de azeite, banana da terra frita, cana, rapadura, pipoca, coco e o próprio caruru. Antes de servir os convidados, no entanto, uma tradição nunca pode ser desrespeitada: os santos são servidos primeiro! A comida é colocada em pequenas quartinhas de barro, além do mel oferecido para os santos beberem. Depois dos santos, é hora de dar de comer a sete meninos, que geralmente são distribuídos em uma toalha de mesa branca e dispostos em roda. O motivo das crianças serem servidas primeiro está relacionado com o fato de Cosme, Damião e Doum serem santos protetores dos pequenos.

Caruru, vatapá, arroz, pirão, farofa. Imagem: Erik Pzado

Caruru, vatapá, arroz, pirão, farofa. Imagem: Erik Pzado

Cresci assim então. Primeiro sentei na toalha branca, fui um dos sete meninos. Depois, passei a ajudar a mexer a panela do vatapá e do caruru, a fritar banana e a servir as crianças, que agora ocupavam o meu lugar. Fui a muitos carurus em minha vida e vi de tudo. Vi São Cosme incorporar em uma tia, a pedir mel e a contar segredos, causando desespero aos demais. Vi duas garrafas caírem sozinhas em uma mesa sem que ninguém estivesse por perto. Traquinagem de meninos, que se ofenderam por alguém ter roubado do prato um pedaço de acarajé, sem que antes fossem servidos. Ah, mas sobretudo cresci com boas lembranças destes carurus, com cheiro forte de azeite, com o riso das crianças ao ganharem saquinhos de bala, com o sabor da comida no prato, com o alarido das grande feiras, onde eu ía comprar quiabo e camarão com minha mãe. “Chegue mais, freguesa! Vai dar um caruru danado de bom!”.

Mesa de Cosme e Damião. Imagem: http://www.bahianoticias.com.br/fotos/editor/Image/cosme_e_damiao.jpg

Mesa de Cosme e Damião. Imagem: http://www.bahianoticias.com.br/fotos/editor/Image/cosme_e_damiao.jpg

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7 Comentários

  1. Ótimo texto!
    Já as imagens … Abriram o apetite.
    Parabéns pelo blog!

  2. O que achei mais legal desse post foi a explicação e os detalhes de tudo: como é feito, o que representa, as sensações…isso faz com que as pessoas relembrem de suas infâncias e tenham saudade de tudo o que já aconteceu. Isso é muito bom e deixa um gostinho de quero mais.

  3. Hummmmmm, belas imagens, fiquei com água na boca.

    Salvador é tudo de bom mesmo.

  4. Fernanda disse:

    Olá, adorei o post. Nunca fui, mas gostaria muito de conhecer um desses carurus tradicionais que acontecem em Salvador, com muita festa e tudo a caráter…Onde posso encontrar? Tem alguma indicação?

  5. Além de estar morrendo de vontade de ir para Salvador é uma tortura ver essas fotos!

    Muito legal a história dos Santos e dos sete meninos. Quanto eu era criança ia em um jantar que uma amiga da minha mãe baiana fazia para comemorar o Dia…Lembro que tinha milhares de santinhos da dupla pela casa, junto do fogão! Boas lembranças!

    • Lis, minha nêga, dia de caruru era um dos meus dias do ano preferidos, quando eu vivia em Salvador. Não só pela comida, que é fantástica, mas sobretudo pelos rituais, que fizeram parte e ainda fazem parte do meu imaginário.

      Sinto saudades profundas dos dias de São Cosme e Damião em Salvador. Mas, quem sabe, um dia volto para a terrinha, né?

      Um grande beijo,

      Jana.


 

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