Jegue Crônicas: Entre joaninhas, tulipas e um envelope azul


Em homenagem a Smita e Kishore Iyengar

Hoje estava arrumando o caos da gaveta da escrivaninha do escritório, quando (re)encontrei um envelope azul guardado próximo ao meu passaporte. Não sei se de forma consciente ou não, alinhavei o documento, onde guardo algumas viagens, a uma lembrança querida associada a uma das experiências mais significativas que tive em minha vida até hoje: a de conviver, por alguns dias, com culturas profundamente distintas da minha simultaneamente. Em 2011, Erik e eu fizemos uma viagem ao Canadá para participarmos de um evento voltado para mídias tradicionais e sociais. Durante quase 10 dias de viagem, convivemos com duas chinesas, três canadenses e três indianos de forma mais próxima. Entre caminhadas, conversas e momentos ao redor da mesa, vivemos momentos de identificação e de estranhamento, seja pelo exótico (aos nossos olhos) das vestimentas ou de um hábito por nós pouco comum, que é o de beber água quente, quando o chá falta à refeição.

Lembrança de nossos amigos indianos Smita e Kishore Iyengar. Imagem: Janaína Calaça

Lembrança de nossos amigos indianos Smita e Kishore Iyengar. Imagem: Janaína Calaça

Em um mundo globalizado, em que os símbolos culturais circulam e se atravessam, o estranhamento é amenizado, as barreiras, os limites parecem se diluir, mas, mesmo assim, há aspectos culturais que se sobressaem e que marcam presença. No entanto, apesar das diferenças marcantes e, em alguns casos, da barreira da língua, da dificuldade de comunicação, ainda assim há espaço para troca e para cultivar relações afetivas que perduram, apesar da distância e do pouco contato. Este, no fim das contas, é o resumo do significado deste envelope azul, que guarda a lembrança táctil de um casal de indianos que conhecemos nesta viagem: Smita e Kishore Iyengar.

Entre joaninhas e tulipas, amizade cultivada entre culturas diferentes. Imagem: Janaína Calaça

Entre joaninhas e tulipas, amizade cultivada entre culturas diferentes. Imagem: Janaína Calaça

Sempre caminhando lado a lado, sempre timidamente enlaçados, Smita e Kishore acompanhavam todas as atividades propostas na viagem. De forma reservada, o casal cumprimentava e interagia com todos. Tão distintos de nós, que ríamos alto, falávamos bobagens e levávamos adiante a imagem da expansividade do brasileiro, nossos amigos indianos (sim, nossos amigos) nos observavam silenciosamente. No segundo ou terceiro dia da viagem (não me recordo bem ao certo), sentamos em frente ao casal em um pequeno bistrô em Montréal. Inesperadamente, Smita, com seus olhos graúdos, escuros e profundos, tão comumente tímidos, nos pediu licença para falar. No burburinho, no caos do bistrô e com a barreira da língua presente (meu inglês anda em estado terminal), ainda assim consegui compreendê-la.

Entre joaninhas e tulipas, amizade cultivada entre culturas diferentes. Imagem: Janaína Calaça

Entre joaninhas e tulipas, amizade cultivada entre culturas diferentes. Imagem: Janaína Calaça

Em um momento como este, por mais cético que você seja, é difícil não ser atingido, diríamos assim, pelo inusitado. Smita e Kishore, até então, tinham trocado poucas palavras conosco (Erik e eu), não sabiam nada sobre nós, sobre nossa história, sobre como nos tornamos o casal que somos hoje. Como quem já nos conhecia profundamente, Smita começou a falar. “Janaína, vocês dois são duas almas que se encontraram. Vocês tinham que se encontrar na vida, mas você, especialmente você, precisa deixar o passado para trás. Deixar as coisas velhas, as mágoas, os medos para trás. Essas coisas todas só entristecem, só atrapalham, só separam”. Ao mesmo tempo que Smita falava, Kishore acrescentava. “Jogue tudo fora, deixe tudo para trás”. Em dado momento, me peguei chorando na mesa e me perguntando: “como alguém que não nos conhece sabe exatamente quais são os nossos maiores entraves?”. E Smita continuou sua fala, que eu já não sabia se era fruto da sabedoria dos anos ou de algo maior, que fugia à racionalidade humana. “Vocês dois são almas que tinham que se encontrar, mas deixe o passado para trás”.

Lenço e lembrança. Imagem: Janaína Calaça

Lenço e lembrança. Imagem: Janaína Calaça

A conversa foi longa e trocamos, finalmente, um pouco de nossas histórias. Smita e Kishore contaram como se conheceram, como os olhares se cruzaram, como a vida os uniu, o enfrentamento com as famílias, as castas distintas, as barreiras sociais. O amor, no entanto, foi o que selou a união, mesmo com todos os entraves. Entre Erik e eu, não havia a distinção de castas, nem barreiras sociais, mas outros tipos de entraves igualmente profundos. Sem saber, Smita e Kishore tocaram em um dos pontos mais sensíveis para nós até então: a presença do passado. Depois de tanto choro de minha parte, levantei e fui dar uma volta na lojinha ligada ao bistrô. Queria, de alguma forma, encontrar algo para presentear aquela mulher de olhos graúdos e sábios, que trouxe de tão longe uma verdade inquestionável, com a qual eu me debatia meses a fio. Conhecendo muito pouco da cultura de Smita e Kishore, tive medo de errar, de afrontar com a escolha errada de um presente, quando vi um pote de geleia de frutas vermelhas produzida por locais. Pedi para embalar e escrevi “que a vida seja doce para nossos novos amigos”. Entreguei o presente, que Smita e Kishore relutaram em receber. Eu, àquela altura, já entrava em desespero achando que havia sido inconveniente por pouco saber de sua cultura. No fim, consegui convencê-los a aceitar nossa lembrança como um gesto de gratidão pelas palavras que trouxeram para nós.

Joaninhas, tulipas e boa sorte no amor. Imagem: Janaína Calaça

Joaninhas, tulipas e boa sorte no amor. Imagem: Janaína Calaça

No dia seguinte a esta conversa, durante o café da manhã, fui surpreendida pelo bom dia de Smita e de Kishore e por um envelope colocado em minhas mãos. No envelope azul, os dizeres “To the World’s most sweetest couple! With best wishes from Kishore & Smita Iyengar”. Surpreendida pelo presente, perguntei se podia abri-lo naquele momento. Um lindo lenço de seda com estampas de tulipas e joaninhas: minhas flores preferidas e um bichinho simpático me aguardavam. “Sorte no amor, bons frutos e amizade, Janaína. É o significado das joaninhas e das tulipas”, disse Smita. Hoje, este lenço mora ainda no envelope azul, esperando o dia em que o usarei no dia do meu casamento. Não sei como o usarei, mas sei que ele estará lá, para me lembrar que em recomeços ou novos começos, devemos nos livrar do passado e não alimentar sua força destrutiva. No dia do meu casamento, eles estarão lá: o lenço, Smita e Kishore em nossas lembranças e este ensinamento que levarei até os meus últimos dias.

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15 Comentários

  1. Que história linda, jana…! Sou da teoria que algumas pessoas aparecem na hora certa e cabe a gente perceber e aceitar isso ou não. Vcs perceberam a felicidade que aquelas palavras podiam trazer, e isso é valioso =)

    • Ju, eu caí em um choro maluco enquanto a Smita falava. Depois, em uma oportunidade, contarei minha história com o Erik e você entenderá porque estas palavras foram tão certas.

      Um grande e forte abraço,

      Jana.

  2. Erik Pzado disse:

    Chorei ao ler meu amor! Sou feliz por ter deixado o passado no passado e ter me lançado ao meu destino!

    Te amo!

  3. […] Jegue Crônicas: Entre joaninhas, tulipas e um envelope azul Postado por Janaína Calaça em mar – 30 – 2012 4 Comentários // // […]

  4. Amália disse:

    Que saco esse post!
    O q nós leitores temos a ver com isso?

  5. betina disse:

    Muito boa a sua história, gostei do blog como um todo, parábens!

  6. Fernando disse:

    Adorei sua história. Parabéns pelo trabalho.

  7. Raquel Netto disse:

    Querida Jana!

    Lindo post! Lembrei muito da minha história com meu namorado, hj marido.
    O que simboliza a minha libertação do passado são os pássaros que estiveram presentes e vários momentos do meu casamento. (depois veja em meu face..Raquel Netto)
    Quando conseguimos tomar esta posição realmente tudo fica fica mais leve, pleno!
    Estou feliz por vocês dois e meu desejo é que sejam felizes da mesma forma que somos!
    Beijo no coração!

  8. Joao Lucena disse:

    Janaina, esta é uma bela história e o mais interessante que ocorreu durante uma viagem. Estas pessoas que você conheceu talve’s tenham somado muitos pontos em suuas vidas. Com certesa esta senhoras te abriu os seus olhos para a coisa mais importante. Viver o dia de hoje. Como é surpreendente o que acontece em nossas viagens. Ou melhor, depois de uma viagem, jamais seremos as mesmas pessoas. Voc6e concorda?

    • Concordo sim, João. 🙂 Nunca permanecemos os mesmos depois de uma viagem, depois de conhecer pessoas, depois de entrarmos em contato com outras realidades e culturas. Tlvz as pessoas fossem mais tolerantes com relação às diferenças, se viajassem mais. Deixassem de investir todo se dinheiro em status e investisse em experiências de vida. Nunca, nunca permanecemos os mesmos após colocarmos os pés na estrada.

      Um grande abraço,

      Jana.


 

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